[Quem faz o Hai] Mariana Fischer, idealizadora do projeto
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[Quem faz o Hai] Mariana Fischer, idealizadora do projeto

Eu era muito pequena, mas me lembro como se fosse hoje, das tardes pós escola em que eu e meus irmãos sentávamos no banco de trás do carro e olhávamos aquela panela grande, maior do que nós. Ela ocupava quase todo o porta-malas do carro e dela saía uma fumaça com um cheiro muito bom. Cuidávamos dessa panela com carinho para que nada acontecesse. Éramos guarda-costas de algo muito valioso. Aquela era a sopa que alimentaria muitas pessoas da comunidade. Eram sopas, distribuição de alimentos, roupas, visitas, apoio, conversas, organizações de festas e Natal solidário. Eu tive o privilégio de crescer em meio a comunidades, projetos sociais e mais do que isso: em meio a pessoas que me ensinaram muito sobre a vida. 

 

Eu não me lembro de nenhum momento da minha vida em que fiquei sem fazer ação social. E já adulta eu fui, a cada dia, me interessando mais e mais por ajudar o próximo e entender como as organizações não governamentais funcionavam. Foi com essa curiosidade que comecei a participar dos processos de seleção de voluntários de ONGs maiores, como Make a Wish e História Viva. 

 

No dia em que apresentei minha monografia na pós-graduação, tirei nota máxima e também me formei como contadora de histórias no História Viva. Foi um dia tão importante e feliz. Nessa mesma ordem: importante por ter nota máxima na entrega do TCC e feliz na festa de formatura do Instituto. Foi durante as visitas que fazia aos hospitais e asilos, onde transformava histórias de idosos em contos infantis para levar até as crianças nos hospitais, que eu percebi que o voluntariado tinha transformado minha vida. Entre todas as ações sociais que fazia, eu trabalhava e estudava, mas o social era o mais importante: era o que me preenchia, foi onde encontrei grandes amizades e me encontrei no mundo. 


Mas foi em 2011 que tudo começou a mudar mais intensamente. No meu processo de autoconhecimento, fui viajar e escolhi ficar o mês inteiro das minhas férias de trabalho em Cuba. Na época, viajar para Cuba era uma loucura. Depois de um mês sem internet, escutando histórias e experienciando aquele país, eu não voltei a ser a mesma Mariana. E assim, logo em seguida, eu tive a necessidade de tirar outras férias e me envolver daquela maneira mais uma vez. 

 

Resolvi então fazer voluntariado em um lugar que não fosse o Brasil, por uma simples razão: sempre acreditei que somos todos um, que o amor não tem fronteiras e que só estamos bem se todos estão. Eu queria entender e vivenciar, em diferentes lugares, como as pessoas em situações de vulnerabilidade viviam e o que elas tinham a me ensinar. Porque eu aprendi, desde aquela época da distribuição da sopa, que são as pessoas quem me ensinam sobre a vida. 

 

Nesta segunda viagem, escolhi a Guatemala. Nos dois primeiros dias em Antigua, eu apenas chorava. Visitava a igreja e chorava como um bebê. Eu não tinha ideia do porquê eu chorava tanto, mas o fato foi que, depois de 25 dias dando aulas de inglês para a comunidade de pastores, eu, mais uma vez, não voltei a mesma. Já no Brasil, passei quatro meses em crises de choros frequentes. Não sabia o que estava acontecendo, mas sentia profundamente que ciclos da minha vida estavam se encerrando. Senti a imensa necessidade de mudar. Continuar vivendo os meus privilégios e ignorar tudo o que vivi não era mais uma possibilidade. 

 

Eu sempre gostei do meu trabalho, mas ele simplesmente não me preenchia mais. Eu já tinha vivido tantas experiências transformadoras, conhecido tantas pessoas. A mudança era inevitável. Abracei meus valores e meus porquês, encarei de perto os meus medos e entendi que eu precisava ir além. E foi assim que resolvi pedir demissão e passar três meses viajando pelo sudeste asiático. Essa minha vontade de viajar para lugares não tradicionais vem da necessidade de enxergar a vida através do simples. Gosto de explorar e viver a simplicidade do dia-a-dia de uma cultura que não é a minha, de um lugar que não conheço, de uma língua que não falo. É através dessas experiências que reflito e entendo mais sobre a minha própria vida. É assim que percebo que nossas semelhanças são maiores que as diferenças. 

 

Depois dessa temporada na Ásia, decidi voltar para o Brasil e para o mercado de trabalho. Passei meses procurando emprego e não fui chamada para nenhuma entrevista. Enquanto isso, fazia freelas de fotografia infantil e foi quando, em 2014, vi no Instagram uma fotografia do Sudão que mexeu profundamente comigo. E, praticamente de uma hora para outra, eu resolvi que precisava ir para algum país do continente africano. Eu só não pensei naquele momento que uma mulher viajando sozinha para aquele destino talvez não fosse tão simples. E que eu não tinha dinheiro suficiente pra isso. “Detalhes”.


Com essa grande decisão tomada, reuni minhas possibilidades e em quatro meses fiz bingos, vendi fotografias que tirei na Ásia e criei uma campanha de financiamento coletivo com o objetivo de arrecadar fundos para ajudar projetos já existentes no Quênia e Uganda, em uma viagem que duraria 2 meses. Tive uma campanha bem sucedida e consegui arrecadar o dinheiro que precisava para essa nova aventura. Uma amiga resolveu viajar comigo de última hora e alugamos um apartamento para passarmos um mês no Quênia - negociado através do Facebook, o primeiro ato de coragem e confiança. Comprei a passagem e no dia 01 de abril de 2015 cheguei em Nairobi, acreditando que essa seria mais uma viagem de voluntariado e que depois de um mês no Quênia eu iria para Uganda. 

 

E como você já deve imaginar, até hoje eu não conheço a Uganda. 

Tudo mudou quando eu cheguei na comunidade de Kabiria, que fica em Nairobi, capital do Quênia. Conheci essa comunidade através de um projeto local e logo no meu primeiro dia por lá eu soube que meus planos iriam mudar. Foi conversando com as pessoas ali que entendi que a educação pública não era gratuita - e que isso fazia com que fosse praticamente impossível romper com o ciclo da pobreza. Sem estudo e com muita fome, as crianças estavam na rua, sonhando em ir para a escola. E eu, que estudei a minha vida toda em escola pública, agradecia a oportunidade de ser brasileira e não conseguia não pensar, a cada instante, o que eu poderia fazer. Aquela realidade me abalou profundamente. Eu chorava e rezava pensando que voltar para o Brasil, para a minha vida de privilégios, era injusto. Mas ao mesmo tempo pensava: quem sou eu para fazer algo? 


Diante daquela realidade, me rendi e deixei meu coração me guiar. E com o valor que arrecadei para a viagem, resolvi alugar um espaço na comunidade, comprar um fogão, cadeiras, pratos e colheres. Tudo isso em um mês depois de ter chegado. E foi assim que, no dia 5 de maio de 2015, o Hai Africa foi fundado. Eu me arrepio só de lembrar como tudo isso aconteceu. Foi tão intenso, tive tanto medo. Mas um mês depois da inauguração, o que era para ser um espaço de brincar se tornou uma escola infantil. Tínhamos contratado uma professora. Agora, éramos uma escola.

 

Quase seis anos se passaram e a minha ficha ainda não caiu. Hoje o Hai impacta e  transforma a vida de mais de 100 famílias. Temos uma equipe de pessoas dispostas e entregues a criar ferramentas e todo o suporte necessário para que as pessoas da comunidade sejam protagonistas de suas vidas, histórias e transformações. Hoje eu tenho uma família no Quênia que me ensina todos os dias o que é o amor. Sinto que escolhi o caminho certo, apesar de todos os desafios que envolvem o social. Ainda assim, eu segui o meu coração. Realizo-me a cada dia ao perceber que, apesar de ser uma caminhada difícil, a potência que floresce em mim desabrocha em muitas vidas. Desta forma, encontro forças para continuar, transformando com amor. E que isso nunca mude!

3 comentários
  • Que história incrível!
    Sinto que algumas histórias como a sua, chegam até mim para mostrar que devemos sempre seguir nosso coração!
    Quando você descreve seus sentimentos, eu me identifico muito.
    Após um ano muito conturbado e cheio de incertezas, senti que algo em mim havia despertado… um ciclo havia se encerrado e eu não me encaixava mais onde eu estava.
    Larguei meu emprego no final do ano passado , certa de que eu precisava mudar , de que eu poderia fazer algo maior para fazer diferença no mundo , para me realizar como ser humano … mas hoje , me sinto um pouco perdida, sem saber por onde começar!
    As vezes bate um arrependimento de algumas decisões que tomei, mas ler a sua história me incentiva a continuar …
    Obrigada por compartilhar essa sua experiência e parabéns por toda a sua trajetória e realizações tão importantes para a humanidade!
    OBRIGADA!

    Jessica em
  • Mari é luz e leva luz por onde passa!

    Vitória Almeida Fonseca em
  • A história da Mari é uma baita dose de inspiração. Obrigada por compartilhar sua trajetória com a gente. Esse texto tocou aqui dentro e me encheu de orgulho por ter cruzado com vc nessa vida, Mari 💛

    Tayná Abad em

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